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Sérgio Fleury Moraes (1959-2024): Fundou o Debate, um dos mais combativos jornais do interior de São Paulo

À frente do semanário de Santa Cruz do Rio Pardo, jornalista enfrentou poderosos locais e denunciou a falta de critério na imposição de indenizações contra a imprensa

Flávio Mantovani

A vocação empreendedora do jornalista Sérgio Fleury Moraes se manifestou ainda nos tempos de criança. Ele costumava produzir gibis com papel de embrulhar pão. Como ainda não sabia escrever, pedia para algum familiar colocar o diálogo nos balões. Em seguida, ele vendia o resultado final para os próprios pais e avós.

O contato com o jornalismo seguiu a mesma toada. Já alfabetizado, Sérgio fazia um resumo da Folha de São Paulo e o vendia para o pai, que era assinante de O Estado de São Paulo. Já o avô, assinante da Folha, recebia um resumo do Estado, desde que estivesse disposto a pagar por ele.

Nascido em 25 de outubro de 1959 em Santo Anastácio (SP), Sérgio Fleury Moraes se estabeleceu com a família em Santa Cruz do Rio Pardo no início dos anos 60.

Unindo o lado empreendedor ao interesse pelo jornalismo, Moraes fundou em 1977 o jornal Debate, que se notabilizou pelo caráter combativo e pela independência editorial numa época em que os jornais do interior costumavam estar ligados a grupos políticos.

O pai até tentou fazer com que o filho fosse engenheiro, mas não teve jeito. No início da década de 70, ainda na adolescência, Sérgio editava o jornal estudantil “O Furinho”, espécie de antecessor do Debate. O pasquim copiado em mimeógrafo era vendido nas ruas da cidade pelo próprio editor.

O Debate chegou a contar com colaboradores de peso no final dos anos 70. O jornalista Fernando Morais e o sociólogo Fernando Henrique Cardoso foram alguns dos nomes ilustres que escreveram regularmente para o jornal. Este último teve textos publicados no Debate durante dez anos.

Nos anos 80, o Debate se engajou na luta pela redemocratização do país. Além de manter uma linha crítica em relação a desmandos de políticos locais, o semanário foi pioneiro no uso de cores e na adoção de suplementos, entre eles o Caderno D. Fleury era um entusiasta da cultura regional.

Na imprensa nacional

O Debate e seu diretor-proprietário ganharam destaque em veículos de abrangência nacional nos anos 90. Após revelar que o município bancava o aluguel de um juiz de Santa Cruz do Rio Pardo, Sérgio foi condenado a pagar uma indenização milionária por danos morais. O magistrado, que alegava ser vítima de uma campanha difamatória movida pelo semanário, chegou a decretar a prisão do jornalista.

Clóvis Rossi, então colunista da Folha de São Paulo, expôs a arbitrariedade no artigo “Macondo é pertinho” veiculado em 1996. “O crime de Sérgio: ter “desobedecido” ordem do juiz Antônio Magdalena, da Comarca local, que vetava publicação de reportagem, durante a campanha de 1992, sobre dívidas astronômicas do hoje vice-prefeito, Manoel Carlos Manezinho Pereira (PFL)”, dizia o texto publicado em 11 de junho daquele ano. Fleury teve a prisão revogada 19 dias depois.

A Folha, aliás, acompanhou com atenção o desenrolar do imbróglio. Estava sob análise a inexistência de limites para ações indenizatórias, bem como seu potencial risco para a liberdade de imprensa.

Publicado em outubro de 1997, o texto “Caso ‘Debate’ coloca indenizações em xeque”, do enviado especial Rogério Simões, destacava o valor da condenação: R$ 345 mil. Já matéria publicada pela Folha em 2009 informava que a indenização de danos morais contra Fleury somava R$ 593 mil, valor que correspondia a dois anos e meio do faturamento bruto do jornal.

O jornalista de Santa Cruz do Rio Pardo também se manifestou em artigo no jornal paulistano. “Já fui preso por resistir a uma tentativa de censura judicial. Agora, condenado a pagar uma indenização milionária (R$ 345 mil). Luto para que minha empresa – que fatura em média R$ 8 mil e tem seis funcionários – possa sobreviver”, escreveu em 22 de outubro de 1997. “É esse o perigo de deixar ao arbítrio de um juiz a fixação das indenizações”, postulou Moraes.

Luta contra a Lei de Imprensa

A condenação de Fleury foi baseada na antiga Lei de Imprensa (5.250/67) criada durante a ditadura militar. A norma não estabelecia critérios para a imposição de multas a veículos e jornalistas. Prevalecia a subjetividade do detentor da caneta.

O “Caso Debate” virou, portanto, um paradigma na luta contra a Lei de Imprensa, que só seria definitivamente derrubada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2009. Com a revogação, os processos contra empresas de comunicação e jornalistas passaram a ser norteados pelos códigos Penal e Civil, além de dispositivos previstos na Constituição Federal. Fleury, por seu turno, converteu-se num símbolo do embate contra a legislação de 1967.

Tamanho destaque o levou ao programa do Jô Soares (foto), onde falou sobre as polêmicas envolvendo seu jornal. Posteriormente, o jornalista entregou o prêmio “Liberdade de Imprensa” ao então deputado Miro Teixeira (PDT), autor da ação que derrubou a Lei de Imprensa, durante solenidade em Brasília.

Sérgio seguia sua rotina de dedicação exclusiva ao Debate quando, recentemente, descobriu um câncer em estágio avançado. O jornalista morreu no dia 23 de fevereiro, aos 64 anos, no Hospital Amaral Carvalho de Jaú. Ele deixa três filhos.

A Prefeitura de Santa Cruz do Rio Pardo decretou luto oficial de três. O corpo de Sérgio Fleury Moraes foi enterrado no cemitério da cidade. O Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo (SJSP) lamentou a morte do jornalista. 

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