Especial

Crônica: O trabalho danifica o homem

Ao contrário do que alardeavam os positivistas, o progresso não libertou o homem: acumulamos funções extintas pela tecnologia e não recebemos pelo trabalho extra

Flávio Mantovani

OBS: imagem do portão de um campo de concentração nazista com a inscrição “O trabalho liberta”.

Que me perdoem os jovens que se estapeiam para ingressar na graduação de medicina, engenharia ou direito; que me ignorem os doutos frequentadores de tribunais superiores; que não me levem a mal os dirigentes de confrarias que se reúnem semanalmente para o chá das cinco horas. O fato é que a ocupação do artista, de longe, é a mais necessária e nobre de todas.  

Ao contrário do que alardeavam os positivistas, o progresso não libertou o homem. Acumulamos funções extintas pela tecnologia e não recebemos pelo trabalho extra.  Se antes o expediente estava restrito ao horário comercial, hoje recebemos mensagens incômodas do superior à meia-noite. A separação entre trabalho e vida privada já não existe mais.

A hiperconectividade é adversária do encantamento. Ler se transformou num ato de rebeldia. Enfrentar uma obra de Guimarães Rosa ou Dostoievski é mais subversivo do que defender a revolução pelas armas. Gastar tempo apreciando uma obra de arte é algo contraproducente que não contribui para o avanço da economia.

Sem tempo para nada, a não ser para gastar a saúde no trabalho, alcançamos a etapa mais alta do desenvolvimento humano: o homo atempvs, ser programado para repetir tarefas e consumir.

Sem tempo, a mais valiosa das commodities hoje, não há fruição.  Sem tempo, não há reflexão. E se não há o exercício da capacidade simbólica, função que nos diferencia dos demais animais, não faz muito sentido a existência. 

Cabe ao artista, portanto, organizar a resistência e restituir a humanidade que nos foi retirada pela sociedade atual. É incumbência do poeta provocar reflexão; compete ao escritor gerar estranhamento; é missão do pintor chocar através do prazer estético.

Só a arte possibilita o distanciamento do ciclo vicioso no qual estamos metidos. Se não fosse o artista, jamais saberíamos que a vida vai muito além de trabalhar e pagar contas.

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