Belchior se deixou aniquilar em prol da própria obra
FLÁVIO MANTOVANI
A morte do compositor cearense Belchior gerou uma onda de comoção em todo o país. No entanto, muito além de deixar um trabalho de valor inestimável para a MPB, o que por si só já seria meritório, Belchior soube honrar a própria obra até o último dia, capacidade rara mesmo entre os grandes.
Antes, porém, é preciso pontuar alguns aspectos que marcaram a carreira do cantor. Além de cronista agudo do choque entre gerações, aspecto bastante claro na sua carreira, o compositor deixou evidente sua opção pelos de baixo. Enquanto Caetano poetizava as esquinas de São Paulo, Belchior olhava a metrópole a partir de quem já fora obrigado a dormir na rua.
Por outro lado, ao contrário do que ocorreu com outros grandes nomes da música, seu prestígio não o transformou numa espécie de guru habilitado a opinar sobre todo tipo de assunto, segmento do qual Veloso e Lobão são os exemplos mais próximos.
Já o traço mais gritante pontuado no início do texto foi se consolidando ao longo dos anos. O cearense sabia o tamanho que sua obra ocupa na cultura nacional e deixava isso bem claro em entrevistas e textos, sem qualquer falsa modéstia.
A constatação o levou a viver a liberdade plena que só a arte permite: Belchior se foi para um mundo próprio, forjado nas próprias entranhas. Uma realidade na qual dinheiro e prestígio não se sobrepõem ao propósito maior que o compositor levava no bolso do paletó.
O tão explorado autoexílio, o rompimento com empresários e familiares, o abandono de aspectos formais da carreira, a aparente mania de perseguição: tudo fez parte de um plano minimamente pensado que o artista julgou necessário.
Belchior se deixou abater pelo próprio trabalho, como se a aniquilação pessoal fosse uma etapa inescapável ao triunfo final do seu legado. Passo numa direção que, diga-se de passagem, poucos medalhões das artes teriam coragem de dar.
O público lamenta, mas opção do artista já estava clara desde o final dos anos 70. “Deixem que eu decida a minha vida”, bradava o poeta em “Comentário a Respeito de John”.
Dói saber que o homem se foi. Consola constatar que sua obra permanecerá.