Especial

Get Back (ou quando Lennon quis reunir os Beatles)

Se fosse rápido, talvez Paul conseguisse convencer os ex-companheiros a não embarcar em mais uma ideia narcisista e egocêntrica de John

Flávio Mantovani

O telefone parecia mais irritante que o habitual naquela manhã de dezembro.
– Macca, estamos voltando. A gente se encontra logo mais no Abbey.

Paul afastou o telefone do ouvido e olhou assustado para o aparelho, enquanto aquela voz familiar continuava balbuciando alguma coisa do outro lado da linha.
– Que diabo significa isso?, gritou, ainda meio sonolento. Retornou o utensílio à orelha depois de alguns segundos, mas o interlocutor já havia desligado.

Não podia acreditar no que acabava de ouvir. Teve o impulso de retornar a ligação, mas já não tinha o telefone do ex-companheiro de banda desde que John se mudara com Yoko para Nova York.

Ligou para a casa de George após jogar um pouco de água no rosto. Talvez tudo não passasse de um trote bem feito. Mas a demora do guitarrista para atendê-lo indicou que algo estava errado.

– Você vai compactuar com isso depois de tudo que aconteceu? – perguntou Paul, com a voz alterada.

– Se eu fui capaz de esquecer nossos conflitos, por que não perdoaria minhas diferenças com John? – respondeu George, enfático.

Ao ligar para a casa de Ringo, Paul fora informado que o baterista havia saído para um compromisso desconhecido.

O mundo estava de cabeça pra baixo. Depois de anos de mágoas veladas e distanciamento deliberado, John agora aparecia com essa pérola sem qualquer aviso prévio.
– Será que esse filho da puta ainda precisa de dinheiro?, pensava Paul, enquanto esmurrava a escrivaninha.

Acusado de usar o fim da banda para vender discos apesar de seus esforços solitários para evitar o desfecho conhecido por todos, Paul agora era pego de surpresa. E a punhalada vinha justamente daquele cuja inércia foi determinante para o fim da banda.

Talvez Lennon tivesse o propósito de dar novo fôlego às rusgas antigas, principalmente agora que a carreira-solo de McCartney estava consolidada. Era isso. A história do retorno era apenas uma tentativa de desestabilizá-lo. John jamais o chamara de “Macca”. Estava aí um sinal inequívoco do sarcasmo do velho companheiro de banda.

Paul vestiu o paletó e seguiu para o Abbey Road sem avisar ninguém. Queria evitar que qualquer rumor chegasse à imprensa. Se fosse rápido, talvez conseguisse convencer os ex-companheiros a não embarcar em mais uma ideia narcisista e egocêntrica de John.

– Esse porra nem mora mais na Inglaterra. Quem ele pensa que é?, bufava durante o trajeto.
Entrou no estúdio pela porta dos fundos para não levantar suspeitas. O prédio estava em silêncio. Seguiu a todo vapor até o estúdio principal.

Pelo vidro da sala de gravação, Paul pôde ver a cabeça balançante de Ringo sentado à bateria. George, o beatle quieto, acabava de entrar no estúdio pelo lado oposto: estava radiante. John, bem no meio da sala, cantarolava o refrão de “Get Back”. À sua esquerda, um baixo Hofner repousava no pedestal.

No auge do frenesi, Paul sentiu que alguém tocava seu ombro. Mas permanecia petrificado diante da cena. Outro toque, agora mais forte, mas ainda não conseguiu tirar os olhos do estúdio. Continuou imóvel até receber um safanão definitivo.

Era Linda McCartney que o acordava aos trancos com a notícia de que Lennon estava morto após ser baleado em frente ao edifício Dakota.

One thought on “Get Back (ou quando Lennon quis reunir os Beatles)

  • Fernando Cavallieri

    Nossa, que crônica eletrizante! Sensacional!

    Resposta

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

error: Para reproduzir nosso conteúdo, entre em contato pelo contato@foradepauta.com