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Grupo enfrenta estrada e cansaço para preservar tradição da Folia de Reis

Fora de Pauta acompanha a peregrinação da trupe “Filhos da Terra”, de Iaras, que está na estrada desde 25 de dezembro “anunciando o nascimento de Jesus” e recolhendo prendas para a tradicional festa que é realizada no município

FLÁVIO MANTOVANI

O puxador Benedito Pinto Cardoso, 75, dá a última afinada na viola ali mesmo no quintal enquanto seus companheiros da Folia de Reis “Filhos da Terra”, de Iaras, já estão a postos na sala da casinha de madeira que fica na zona rural de Óleo.

Feito o ajuste, o grupo apresenta a bandeira aos donos da propriedade enquanto Cardoso improvisa versos sobre a chegada do menino Jesus. Dois integrantes caracterizados como palhaços emendam uma dança ao lado do casal anfitrião. A cantoria, que inclui outras vozes, é acompanhada ainda por violão, pandeiro e tambor.

Finda a toada, o palhaço pede ao “patrão” a prenda, que é anotada num caderno. Em seguida tem início outra melodia, também improvisada. “Deus lhe pague, Deus lhe ajude”, entoa o grupo.

Desde o dia 25 de dezembro, aproximadamente dez foliões viajam pela região em busca de donativos para a Festa de Reis de Iaras. Os organizadores afirmam que a tradição tem cerca de 100 anos. Mais de 5 mil pessoas são esperadas no evento no próximo dia 20, que assim como outros do gênero não cobra pela comida. Basta chegar, pegar um prato e enfrentar a fila.   

A peregrinação de sítio em sítio vai até dia 6 de janeiro. Pouso e comida vão aparecendo pelo caminho, geralmente ofertados por proprietários já acostumados com a passagem anual dos “Filhos da Terra”. O itinerário inclui Cerqueira César, Avaré, Arandu, Águas de Santa Bárbara, Manduri, Agudos, Borebi e Bernardino de Campos. Embora privilegie a zona rural, alguns bairros também são visitados.

A viagem é feita numa Kombi que só pega no tranco. Os foliões estimam que vão rodar mil quilômetros até o fim da empreitada.  

Tradição

A Folia de Reis, Reisado ou Festa de Santos Reis é uma manifestação cultural e religiosa tradicional no Brasil, principalmente em São Paulo, Minas Gerais e Bahia.  

O objetivo é rememorar a história dos Três Reis Magos, que segundo a tradição católica saíram à procura do messias logo após seu nascimento em 25 de dezembro. Eles teriam encontrado Jesus Cristo, a quem levaram presentes, no dia 6 de janeiro. 

Misto de religiosidade e folclore, a Folia de Reis agrega dança, ritmos tradicionais como a catira e elementos que ainda marcam a sociabilidade interiorana, como o trabalho voluntário (mutirão) e a generosidade do camponês.

Temor

O limpador do para-brisa da Kombi também não funciona, o que obriga o meio de transporte abarrotado de gente a andar ainda mais devagar quando chove.

O puxador Benedito, que no ano que vem completa 50 anos de folia, acumula a função de motorista. No entanto, há algo que o aflige mais do que as precárias condições do veículo: ele teme que o grupo desapareça caso não surja alguém para assumir seu posto de improvisador. “Eu não vou aguentar muito tempo mais. Se não aparecer ninguém logo, vai ficar só o Edinho pra puxar”, conta ao Fora de Pauta.

Com 47 anos, o parceiro Edson Lopes tem a mesma preocupação, já que a função-chave é executada sempre em dupla. “Se por acaso um não vai ou não está com a cabeça boa pra improvisar, tem o outro pra fazer a vez. O problema é que não dá pra ser qualquer um: a pessoa tem que ter o dom. Se não aparecer alguém, a folia acaba”, reitera.   

O grupo conta com quatros adolescentes, mas nenhum ainda demonstrou aptidão para o cargo problemático: dois são palhaços, um ajuda no coro, outro toca violão.

Uma voz singular

Mesmo um pouco rouca depois de tantos dias na estrada, a voz de Eliete Lopes da Silva, 53, parece ecoar no vale do Rio Pardo de tão forte. No grupo há 13 anos, ela é a responsável pelo timbre agudo que encerra cada verso.

Ser a única mulher da trupe não parece problema. “Eles me respeitam e eu consigo controlar um pouco para que ninguém passe do ponto nas brincadeiras”, diz Silva.

Ela, que não pensa em se aposentar, explica o motivo pelo qual bota o pé na estrada. “É maravilhoso, não tenho palavras para descrever a emoção. Já recebi graça. Largo tudo e saio de casa sem olhar pra trás”, enfatiza Eliete, que viaja ao lado do marido.

Hora do rango

Depois de alguns erros no trajeto, chuva intensa e muita lama pelo caminho, finalmente os “Filhos da Terra” chegam à propriedade onde será servido o almoço. Na verdade, é quase hora do jantar: o ponteiro se aproxima das 17 horas.

A mesa comprida é suficiente para acomodar os foliões; a comida aguarda sobre o fogão de lenha. Mas antes é preciso apresentar a bandeira aos anfitriões. “Tem que ter muita fé. É dureza aguentar tanto tempo na estrada”, avalia o produtor rural João Lauro, que recebe os visitantes há cerca de 20 anos.

A prenda – um bezerro – é anotada no caderninho. É hora de comer. A reportagem é convidada a participar da refeição. É a deixa para o puxador Edson falar um pouco mais sobre a tradição. 

“Além de cantar o nascimento de Jesus, o objetivo da nossa festa é mostrar que todo mundo é igual, independentemente de cor, raça, religião ou classe social. Embora cada um esteja sentado no seu banco, a mesa é a mesma”, diz em alusão à estrutura com 40 metros de comprimento que costuma ser usada na festa em Iaras.

Lá fora chove. Perto dali, o Rio Pardo urra de tão cheio. 

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