Especial

Eu não gostava do Zé Rico

Tentei refutar em bloco as canções do Zé Rico e Tião Carreiro: pegava mal para um roqueiro curtir aquela música simples

Flávio Mantovani

José Rico é um caso raro. Suas canções, assim como as de Tião Carreiro e Raul Seixas, estão na base do chamado inconsciente coletivo.

Suas composições alimentam minhas memórias de infância. Elas estavam nas idas ao bar (quando eu ia comprar cigarros para o meu pai), nos churrascos de famílias, no radinho de pilha do conhecido que vivia só num rancho fundo às margens do Rio Pardo.

Quando iniciei no violão, as músicas de Zé Rico me salvaram de situações incômodas. Leia-se: quando era obrigado a tocar em público. Eu tentava explicar que não cantava, que minha prioridade era ser instrumentista, guitarrista de banda de Rock, que estava só de passagem por ali.

Sem acordo. “Como você toca violão e não canta?”, questionavam. Cercado por todos os lados, eu emendava “Estrada da Vida”. Bastavam os dois primeiros versos e estava dado o golpe de misericórdia: a canção seguia sozinha, carregada no ombro dos presentes.     

Já adolescente, nos tempos em que Iron Maiden, Black Sabbath e Led Zeppelin representavam a verdadeira santíssima trindade, eu tentei refutar em bloco as canções do Zé Rico e Tião Carreiro. Pegava mal para um roqueiro curtir aquela música simples. 

No entanto, bastava baixar a guarda e eu era fatalmente abduzido e levado a esse mundo originário, espécie de Éden do meu ser sediado na infância. Guitarra em punho, camiseta preta e cabelo comprido, eu queria negar aquilo tudo. Mas as canções permaneciam ali, vivas, ainda que eu tentasse extirpá-las de minhas entranhas. 

Depois, nos tempos de universidade, tentei apagar essa maldita memória musical com doses cavalares de Chico Buarque, Tom Jobim, Tom Zé, Novos Baianos, Secos e Molhados, Gil e Caetano. Pegava mal para um estudante de jornalismo ouvir aqueles artistas toscos da roça.  

Em vão. Para um caipira, o imaginário presente nas canções de Milionário e José Rico, Trio Parada Dura e Tião Carreiro está marcado na pele a fogo; tatuagem. Um lugar para o qual o retorno é natural e inescapável. Fugir disso seria fugir de mim mesmo.   

Só então, depois de homem feito, encontrei a cruel verdade: não se arranca raiz; ela nos mantém em pé. Por outro lado, a música é uma mãe cheia de amor incondicional. Sou múltiplo e incompleto. Por isso mesmo, posso caminhar por (quase) todo o espectro musical. 

As canções de Zé Rico – olha o clichê – fizeram minha estrada da vida ser muito mais doce. Obrigado, Zum. Suas modas bonitas vão animar pra sempre nossas rodas de violão.

2 comentários sobre “Eu não gostava do Zé Rico

  • Hehehehehe!!!! Bem, eu não sofro desse mal, Flavinho.

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  • É justamente na autenticidade de Zé Rico, Tião Carreiro e no (antigo) Trio Parada Dura está a receita da “imortalidade” dessa raiz e da “tatuagem”. Cada um tem sua seleção desse imaginário eterno infantil coletivo, além desses citados brilhantemente na matéria, qual escutava em fita cassete na boleia do caminhão do meu tio que levava todo santo dia latões de leite das fazendas e sítios para a Cooperativa, colocaria o recém convertido caipira, Sérgio Reis e os sempre bregas Amado Batista e Odair José do banco traseiro de um opala ou no porta malas de uma belina.

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