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Trenzinho criado por avareenses vira atração nos trilhos da antiga Sorocabana

Desde setembro, plataforma de aço e madeira apelidada de “Tremqueira” pode ser vista circulando entre Barra Grande e Cerqueira César

Flávio Mantovani

Imagine a cena. O morador de um pequeno vilarejo está sentado nos trilhos da antiga Estrada de Ferro Sorocabana. De repente, lá longe, ouve-se o ruído similar ao de um trem.

Acostumado ao ambiente de abandono que recai sobre a linha férrea há anos, o protagonista estranha a cena, olha para os lados e se levanta apressadamente. De imediato, tenta vislumbrar algo mais adiante: nada. “Que loucura. Não tem mais trem”, diz em voz alta, como se tentasse se convencer de algo.

O barulho, contudo, não só persiste, como vai chegando mais perto. Ele leva a mão à testa: sem febre. A caminhada havia rendido naquele dia; estava longe de casa. Há barrancos altos nos dois lados: só se sai dali escalando.

Meio atordoado, ele já identificou de que lado vem o som. Segue no sentido contrário, pensa em correr, mas parece tarde demais. De repente, como se fosse a mais inesperada das visões, uma locomotiva nada usual aparece no horizonte.

Poderia até ser um causo de assombração, mas a pequena composição transporta pessoas bem reais. Trata-se do “Tremqueira”, geringonça criada por um grupo de avareenses que resolveu fazer da paixão pela estrada de ferro um hobby.

Desde setembro, a plataforma de aço e madeira movida por um motor de motocicleta pode ser vista circulando entre Barra Grande, bairro rural de Avaré, e Cerqueira César.

É equipada com buzina, freio a disco, faróis traseiros e dianteiros. Atinge 55 km/h e tem capacidade para oito pessoas. “E o mais importante: transporta muita alegria”, afirma o documentarista Amauri Albuquerque ao Fora de Pauta.

A ideia

O aposentado Orestes Henrique, 60, vivia pensando numa forma de dar alguma utilidade àqueles trilhos que, no passado, viveram anos de glória. Dormentes enferrujados, postes entregues à ação do tempo: aquilo tudo o incomodava profundamente.

“Essa estrutura foi feita com o dinheiro de nossos pais e avós. E veja só a situação em que está”, diz, indignado.   

Começou, então, a ter contato na internet com experimentos nos quais pessoas utilizam a linha férrea para passeios informais, empreendimentos – segundo ele – muito comuns na Europa e nos Estados Unidos.

Os amigos Carlos Alberto Forlini e Cláudio Cabral de Oliveira, ambos também com 60 anos, se entusiasmaram com o projeto. Outro colega da velha guarda, o músico Kléber Silveira, 62, engrossou o caldo. (Coube a este último batizar a plataforma). O caçula Albuquerque, 46, foi a mais recente aquisição da trupe.

A etapa seguinte foi construir o “Tremqueira”. Eles gastaram horas trabalhando no protótipo, que foi avançando na base da tentativa e erro. Um trazia uma peça; outro bancava um item que faltava; alguém acolá dava um palpite sobre a estrutura.  

Nos trilhos

A viagem até Cerqueira César dura aproximadamente 30 minutos. A paisagem, confessam os idealizadores, é deslumbrante. Alguns rolês foram documentados e estão disponíveis no YouTube (confira o link abaixo).

Mas o passeio, contudo, também exige sacrifício dos integrantes da comitiva. Quando chega num ponto crítico, o veículo é obrigado a interromper o trajeto.

O grupo então desembarca, corta galhos que impedem a passagem da “locomotiva”, remove a terra que cobre dormentes e confere a condição da estrutura antes de seguir viagem. As condições precárias da linha exigem reparos constantes. Não por acaso, o “Tremqueira” tem uma caixa de ferramentas a bordo.

A brincadeira também apresentou alguns riscos no início. O trem já descarrilou duas vezes por conta dos obstáculos. Felizmente, ninguém se feriu.

Em outro episódio, os avareenses tiveram que usar os pés para evitar que o comboio se chocasse com uma cerca erguida por posseiros. Além disso, numa incursão noturna, os tripulantes ouviram disparos de arma de fogo perto de Barra Grande.

Atração

Por onde passa, porém, o trenzinho chama a atenção. Quem tem a chance de testemunhar sua aparição fica de boca aberta com a inventividade daqueles desconhecidos.

Na semana do Dia das Crianças, o grupo distribuiu bala e chocolate para a garotada que vive nos barracos às margens da linha. Os “ferroviários” aproveitaram a aproximação para pedir que os moradores das ocupações não bloqueassem os trilhos. 

Os avareenses já ultrapassaram a zona urbana de Cerqueira César, mas enfrentaram um impedimento de ordem técnica para prosseguir: um grande trecho que foi soterrado pela chuva. A meta é avançar até Manduri, Bernardino de Campos e, quem sabe um dia, Chavantes.

Quando a aventura termina, o carrinho de 400 quilos é recolocado na caminhonete e deixado numa chácara perto de Barra Grande.    

Embora a proposta original seja a diversão regada à nostalgia, a trupe espera, mesmo que indiretamente, chamar a atenção para a situação de abandono da antiga Sorocabana, que tanto foi importante para o desenvolvimento regional.

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