Crônica

Sobre poetas e doutores

Observação: Esse texto é contraindicado para cidadãos de bem.

Que me perdoem os jovens que se estapeiam para ingressar na graduação de medicina, engenharia ou direito; que me ignorem os doutos frequentadores de tribunais superiores; que não me levem a mal os dirigentes de confrarias que acomodam integrantes da burguesia falida local. O fato é que a ocupação do artista é, de longe, a mais necessária e nobre de todas.

Ao contrário do que alardeavam os positivistas, o progresso não libertou o homem. Acumulamos funções extintas pela tecnologia sem receber por isso. Se antes o expediente estava restrito ao horário comercial, hoje recebemos mensagens incômodas do patrão à meia-noite. A separação entre trabalho e vida privada não existe mais.

A hiperconectividade é adversária do encantamento. Ler se transformou num ato de rebeldia. Enfrentar um capítulo de Guimarães Rosa ou Dostoievski é mais subversivo do que defender a revolução pelas armas. Apreciar uma obra de arte é algo contraproducente que não contribui para o avanço da economia.

Sem tempo para nada, a não ser para gastar a saúde em uma empresa e ajudar a enriquecer o patrão, alcançamos a etapa mais alta do desenvolvimento: o homo atempvs, ser programado para repetir tarefas e consumir.

Se não há o exercício da capacidade simbólica, função que nos diferencia dos demais animais e garante que vejamos o mundo pelo viés da arte, não há razão para a existência.

Cabe ao artista, portanto, organizar a resistência e restituir a humanidade que nos foi retirada pela sociedade capitalista. É incumbência do poeta provocar reflexão; compete ao escritor gerar estranhamento; é missão do pintor chocar através do prazer estético.

Só a arte possibilita o distanciamento necessário que permite a contemplação do belo que repousa sobre o simples. Se não fosse o poeta, jamais saberíamos a verdade gritante: a vida não está entre o projeto e a realização dele, mas sim na trajetória.

O homo atempvs vive da angústia infinita provocada pelo consumo. Já o poeta vive do caos. Especialista em provocá-lo, a humanidade dá pasto aos poetas enquanto cava a própria extinção.

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