Crônica da quarentena
Nosso modelo de sociedade já havia nos colocado como adversários no futebol, no vestibular, na disputa pelo emprego, mas a pandemia sofisticou esse mecanismo
Flávio Mantovani
A ficha caiu numa tarde de março. A senhora que vinha na minha direção saiu da calçada, fez uma parábola na rua e só voltou ao traçado original alguns metros depois, quando o “perigo” já havia passado.
Usava máscara. De canto de olho, percebei que ela havia resmungado alguma coisa. Talvez um “Tem gente que não se toca mesmo!”.
Nosso modelo de sociedade já havia nos colocado como adversários no futebol, no vestibular, na disputa pelo emprego, mas a pandemia sofisticou esse mecanismo.
Familiares agora olham com ar de repreensão quando alguém espirra na sala. A tia aponta a vovozinha com o queixo, como se dissesse: “Você não está vendo que tem uma pessoa de idade aqui, seu mala?”.
Quem poderia imaginar que uma atividade tão banal como ir à padaria se tornaria uma operação de guerra? Você procura o corredor do leite pela segunda vez e nota que alguém continua lendo a embalagem. Isso lá é hora de se preocupar com a composição do produto, minha senhora? Termine logo sua compra e abra caminho pros outros.
Ainda tem a fila do pão. Olho para a cara das atendentes e faço um diagnóstico mental. “Essa parece estar bem de saúde”. Mas a escolhida já foi designada para atender outro cliente e me sobra o rapaz vestindo a camiseta com a frase “Em treinamento”.
Dá pra ver que a máscara dele está mal colocada. Pânico. Penso em suspender o pedido, mas ele já está com o saquinho suspenso sobre o balcão, fazendo pequenos movimentos pra frente, um pouco impaciente até, esperando que eu saia do transe e pegue logo o embrulho.
O acaso é mesmo implacável. Nem o mais criativo dos escritores ousou imaginar que a mão humana, cujo movimento de pinça foi fundamental para colocar o homo sapiens no topo da cadeia alimentar, pode agora representar a derrocada da nossa espécie se for levada aos olhos ou à boca.
Só um recado aos amigos das rodas de violão: irei, como todo cidadão consciente, respeitar a quarentena. Mas vou logo avisando: meu coração não é feito para encontros on-line.
O churrasquinho vai ganhar novo significado. A imagem da picanha postada na rede social seguida da hashtag “É o que temos pra hoje” ficou em segundo plano. A música, no nosso caso, ficou em segundo plano. Pasmem, companheiros.
No futuro, o simples fato de reunir amigos ou familiares sem que isso represente risco para qualquer um de nós já vai ser motivo de sobra pra comemoração. Com ou sem picanha.