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Passeio na memória arquitetônica do poeta Pablo Neruda

“Forma dessa casa, comprida e estreita, remonta ao universo do poeta e exala muito da cultura chilena”

Gesiel Júnior*

Especial para o Fora de Pauta

Tive o imenso prazer de visitar uma das três-casas museus que serviram de residências do grande poeta chileno Pablo Neruda, Prêmio Nobel de Literatura de 1971. Passei a manhã inteira do último 25 de julho na bela morada de Isla Negra, hoje mantida por uma fundação, às margens do Pacífico, em El Quisco, pequena vila de pescadores, a 96 km de Santiago.

Nem é propriamente uma ilha. Neruda a versejou assim por conta das pedras escuras encontradas na praia. Quem entra nessa panorâmica gleba costeira vê que, além da poesia, a arquitetura era outra paixão de Neruda. A forma dessa casa, comprida e estreita, remonta ao universo do poeta e exala muito da cultura chilena.

Projetada em forma de barco, Isla Negra é construção singular, erguida de maneira pausada. Nela o visitante se depara com peças emblemáticas recolhidas mundo afora na fase diplomática de Neruda. E quem acha que guarda muitas coleções em casa, lá pode ver as do poeta, um autêntico colecionador de tudo. São mais de 3.500 objetos de todo o planeta dispersos inventivamente, a maioria vinculados ao mar: máscaras de proa, réplicas de veleiros, barcos dentro de garrafas, conchas, dentes de cachalote. Ao visitante são ainda exibidas garrafas de formas estranhas, máscaras, sapatos e cachimbos velhos.

Retiro literário

A casa como que nos convida a conhecer mais sobre o seu notável dono, figura histórica politicamente controversa.

Ao regressar da Europa, em 1937, o poeta busca um lugar para dedicar-se a seu “Canto Geral”, o denso livro em que fala da história e da natureza de toda a América, em especial, a latina. Em 1938 ele compra do marinheiro espanhol Eladio Sobrino um sítio com uma pequena cabana de pedra. E no inverno de 1943, com o arquiteto catalão Germán Rodriguez Arias, inicia a primeira série de ampliações. Anos depois, a partir de 1965, junto do arquiteto Sergio Soza projeta os arcos que unem os corpos da casa e anota poeticamente: “A casa foi crescendo, como a gente, como as árvores.”

Por conta da potência evocadora dos objetos que guarda e por seu entorno dominado pela presença do mar, a casa de Isla Negra – a exemplo das outras duas: “La Chascona” em Santiago e “La Sebastiana” em Valparaíso – é uma espécie de compêndio visual do imaginário poético de Ricardo Eliécer Neftalí Reyes Basoalto (1904-1973), que se autodenominou Pablo Neruda e é um dos grandes autores da literatura latino-americana e contemporânea mundial.

Nessa casa foi elaborada parte significativa de sua obra literária e ali ele exerceu a hospitalidade, um dos legados de sua humilde infância sulina. A propósito, o pouco que eu sabia do criador de Isla Negra havia lido nas entrevistas concedidas ao jornalista avareense Israel Dias Novaes. Na primeira delas, em 1944, o autor de “Vinte poemas de amor e uma canção desesperada”, simpatizante do líder comunista brasileiro Luiz Carlos Prestes, se prepara então para ingressar na vida pública e eleger-se senador no ano seguinte. Seus poemas, antes plenos de romantismo, passam a manifestar intenção social, ética e política.

Poesia, procura perpétua

Em meio à sua longa carreira, o diplomata Neruda trabalhou na Ásia e foi cônsul do Chile no México e na Espanha, sempre explicitando nos versos os seus ideais. “Em poesia – declara ao acadêmico Novaes – não se pode permanecer. Descoberto um rumo, eu o palmilho e prossigo na busca de outros. Seria absurdo que me pusesse a ir e vir pela mesma estrada, sempre, sempre… Percorrida eu a deixo, e saio a novas experiências”.

Inconformado com as más condições de vida impostas aos povos do seu continente, o poeta chileno faz uma breve dissertação ideológica e comprometedora ao repórter de Avaré: “Todo artista é um participante. Ninguém consegue fazer nada que não reflita o seu tempo, os anseios de sua época. Isso de arte pura, de torre de marfim, não passa de invenção recente e absurda do capitalismo. Mesmo quem se afirma ausente está militando. O drama é de todos, já que é a sorte do mundo inteiro que está em jogo”.

Em 1970, como revela em seu livro “Papel de jornal”, Israel Novaes tem o último encontro com Neruda, então pré-candidato à presidência da República do Chile. Logo em seguida o poeta abre mão da candidatura em favor do social-democrata Salvador Allende (1908-1973), que vence o pleito e o nomeia embaixador em Paris. Na rápida prosa o entrevistado – prestes a ganhar o Nobel – indaga sobre a literatura brasileira e rasga elogios a Jorge Amado, Cecília Meireles e Graciliano Ramos.

Por fim, recolhido em seu encantador endereço litorâneo, o poeta confessa uma satisfação íntima: “Em minha casa tive brinquedos pequenos e grandes, sem os quais eu não poderia viver. Edifiquei minha casa como um brinquedo e brinco nela da manhã à noite”.

Celebrar os feriados nacionais era gosto de Neruda e ele o fez em 1973, apesar da situação no Chile após o golpe militar e de sua doença já avançada. Em 18 de setembro alguns amigos foram a Isla Negra e lhe deram notícias alarmantes. No dia seguinte, sua condição piora e ele é levado de ambulância para a Clínica Santa Maria, em Santiago, onde morre no dia 23 de setembro.

Nos 17 anos da sanguinária ditadura do general Augusto Pinochet (1973-1990) o nome de Neruda fica sob censura. Por isso ele só retorna a Isla Negra em dezembro de 1992, quando seus restos são trasladados para lá, juntamente com os de sua esposa, Matilde Urrutia. Hoje, ambos repousam em jazigo incrustado na beira do Pacífico.

Assim cumpriu-se a vontade que o poeta havia expressado meio século atrás em seu poema “Disposiciones” do “Canto Geral”: “Companheiros, enterrem-me em Isla Negra, olhando para o mar que conheço, cada trecho áspero de pedras e ondas que meus olhos não retornarão a ver.”

Cronista e pesquisador, é autor de 38 livros sobre a história de Avaré e região.

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