Reportagens

O último dos moicanos: um sebo e sua batalha pela sobrevivência

Fora de Pauta relata os desafios enfrentados pela livraria que fica no centro de Avaré, cidade universitária na qual estudantes quase não frequentam livrarias

FLÁVIO MANTOVANI

Ao encarar a prateleira logo após a entrada, o visitante tem a sensação de que está prestes a testemunhar um duelo: uma edição em inglês da trilogia “50 Tons de Cinza” expande seus tentáculos no centro da plataforma, enquanto a coleção “Os Pensadores” mantém sob seu domínio a parte superior do mostruário.   

Acontece que Montaigne, que observa o best seller de um ângulo privilegiado, parece não se incomodar com sua presença. Tampouco Montesquieu, Kant ou Maquiavel. Nem mesmo Marx, que poderia ser tomado como o mais radical do grupo, se sente desafiado pelo sucesso de E.L. James: a convivência ali é pacífica.

A dialética entre clássico e contemporâneo faz parte do cotidiano do Acervo Sebo e Livraria, ponto fora da curva em meio ao turbulento ritmo que rege o centro de Avaré.

O estabelecimento foi fundado em 2005 por Dárcio Bortoloso Júnior. Cansado da rotina na esfirraria em que trabalhava, ele decidiu atrelar sua subsistência ao amor pelos livros, herança de família.

Desde o início, o empreendedor sabia que viver do comércio de livros num país que não tem tradição de leitura já não seria lá uma tarefa muito fácil. Ainda assim, ele ficou surpreso com o que ouviu quando foi procurar ajuda para estruturar o negócio. “O cara do Sebrae disse que eu estava louco. Saí arrasado”, relata ao Fora de Pauta.

Apesar do prognóstico negativo, Júnior tomou um empréstimo, alugou um imóvel, aplicou uma parte em ajustes no prédio e outra na compra de estoque. Uma cena do primeiro dia com as portas abertas não lhe sai da memória: a caixa registradora marcava R$ 0,10.

Cidade universitária

A tecnologia é determinante no ambiente no qual predomina uma atmosfera retrô. Com cinco faculdades, sem levar em conta os cursos a distância e os técnicos, Avaré é considerada uma cidade universitária. Era de se esperar que esse grupo fizesse parte da clientela do sebo. “Meu menor público é o universitário”, revela. “Livro, infelizmente, é algo caro no Brasil e o estudante parece preferir gastar com festa”, cutuca o entrevistado.

Outra constatação do empreendedor também vai de encontro ao ar cultural geralmente atribuído a Avaré, terra natal da pintora Djanira e da Feira Avareense da Música Popular (Fampop), um dos mais importantes festivais musicais do país.

“Com raras exceções, a elite intelectual da cidade também não faz parte do meu público. Pra dizer a verdade, cerca de 80% do faturamento vem da venda pela internet. Se eu dependesse de Avaré, não compraria um Francis Hime, por exemplo”, diz, enquanto aponta para o CD do compositor carioca que esperava para ser catalogado sobre o balcão.

Não por acaso, duas livrarias fecharam e um sebo sucumbiu desde que o estabelecimento foi inaugurado. “Não é fácil, mas eu prefiro ganhar menos e fazer o que gosto e ainda levar cultura para as pessoas. Não adianta falar mal da cidade e não fazer nada”, avalia.

(A entrevista é suspensa assim que uma senhora chega. “Vim buscar a bíblia, a grandona”, diz a cliente, que já havia sondado o artigo anteriormente. Ela coloca o livro grosso numa sacola e sai).  

O Acervo Sebo e Livraria tem atualmente 16 mil itens catalogados, incluindo 3700 discos, 1400 CDs, 802 DVDs e 1600 gibis e já despachou material para a Holanda, Canadá e Taiwan, além de todo o território brasileiro.

Literatura estrangeira é a preferência do público externo do negócio, que conta com 99% de aprovação dos clientes na rede segundo o proprietário. Já a clientela local prefere temas ligados ao espiritismo, além de esoterismo e religiosidade em geral.

Histórias além do enredo

Assim que termina o corredor que liga o espaço à Rua Rio de Janeiro, uma das mais movimentadas do centro, o visitante topa com uma cena recorrente. Um sujeito de óculos com ar introspectivo, cara de estudante de engenharia da USP, está concentrado no computador, dentro de um ambiente que destoa completamente do mundo lá fora: aqui impera o silêncio, raramente desafiado por algum clássico da música.  

No primeiro momento, a impressão é de que se está diante de um interlocutor não muito disposto ao diálogo. Mas basta uma palavra para que a conversa flua.

Certo dia, um exemplar de “Os Lusíadas” foi parar ali. Embora se tratasse de uma edição portuguesa do século XVIII, com capa de couro bovino, a preciosidade vinha servindo apenas como calço de mesa antes de chegar às mãos de Bortoloso.

O acaso também tratou de levar ao sebo um cliente que deu um destino singular à obra rara: o livro virou presente para o pároco de uma pequena província portuguesa. O sacerdote havia passado a vida procurando a edição até que o cliente, que também era português, a encontrou ali.

“De Portugal direto para Avaré e de Avaré direto para Portugal. Além do enredo, cada livro carrega uma história e o sebo é o ambiente ideal para que ela venha à tona. Essa troca de informação não tem preço”, filosofa Dárcio.   

Fim do livro?

A caixa cheia de livros que acaba de entrar pela porta é acomodada atrás do balcão. Assim como todos os itens que chegam, cada exemplar passa por um processo de higienização e recebe etiqueta antes de ser formalmente catalogado. “Lavoura Arcaica” coroa o volume deixado pelo senhor que sai pela porta após trocar algumas palavras com o proprietário.

Dárcio não faz coro com os apocalípticos que temem o fim do livro. Para ele, sempre vai haver o sujeito que frequenta livrarias, bancas e similares, ainda que seja apenas para conversar com o jornaleiro.

O entrevistado, no entanto, faz um alerta aos eventuais interessados no ramo. “É necessário que o estabelecimento caminhe junto com a internet. O grosso das vendas é cada vez mais pela rede, embora o sebo continue como intermediador entre livro e leitor. Apesar do nicho ser ainda muito bom, a rede é uma ferramenta para todo tipo de comércio hoje. E o sebo não é diferente disso”, finaliza.

3 comentários sobre “O último dos moicanos: um sebo e sua batalha pela sobrevivência

  • Gostei muito da entrevista e reportagem “O último dos moicanos”, com o amigo Dárcio.
    Realmente o “Acervo Sebo e Livraria”, com 16 mil itens catalogados faz toda a diferença em Avaré!
    Levar a cultura para as pessoas, é uma tarefa muito significativa e importante. O Dárcio está de parabéns!

    Também gostei muito do site jornalístico e cultural e vou voltar para ler outras matérias.
    Sou jornalista, trabalhei no Jornal Última Hora (SP) e na Revista Claudia, Editora Abril.
    Cordialmente,
    Sonia de Amorim Mascaro.

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  • O Dárcio é uma espécie de “Heróis da Resistência”, com o perdão do trocadilho com o nome da ex-banda do Leoni. Realmente não me recordo da última vez que pisei no sebo e lamento isso, mas lembro dos papos nossos, juntamente com outros amigos, na loja de discos “Liverpool” de um outro grande amigo, Hugo, em meados da década de 90 até onde essa loja resistiu aos “encantos” do mundo digital. Dárcio também é um especialista em rock clássico, principalmente em Beatles.

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  • O Dárcio é uma espécie de “Heróis da Resistência”, com o perdão do trocadilho com o nome da ex-banda do Leoni. Realmente não me recordo da última vez que pisei no sebo e lamento isso, mas lembro dos papos nossos, juntamente com outros amigos, na loja de discos “Liverpool” de um outro grande amigo, Hugo, em meados da década de 90 até onde essa loja resistiu aos “encantos” do mundo digital. Dárcio também é um especialista em rock clássico, principalmente em Beatles.

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