Especial

Concerto para acalentar temporais

Fora de Pauta relembra como o maestro João Carlos Martins transformou em inesquecível uma apresentação em Avaré que tinha tudo para ser um fiasco

FLÁVIO MANTOVANI

O maestro teve a batuta tirada à força de sua mão logo depois que a chuva começou a verter na manhã daquele 29 de setembro de 2013. Estava ainda na execução do primeiro número, poucos minutos após o início da apresentação.

Perplexos diante de pingos cada vez mais caudalosos, os músicos da Orquestra Bachiana começaram a arrastar os caros instrumentos para o fundo do palco. Indiferente aos sinais do regente, que permanecia movimentando os braços na sua marcação, o gesto instintivo de fuga levou consigo todas as notas. Em alguns segundos não havia mais orquestra, apenas um amontoado de cadeiras e cabos encharcados.

O maestro assistia a tudo meio atônito, embora observasse a debandada com a postura de capitão do Titanic. Quando todos já estavam abrigados e os instrumentos cobertos com lonas, ele finalmente abaixou os braços, ciente da derrota. O concerto já tinha um novo maestro, vindo dos céus.

A história teria aqui seu ponto final se seu protagonista não fosse João Carlos Martins. Reconhecido internacionalmente como pianista desde a década de 60, o paulistano teve que abandonar o instrumento em 2002 em razão de problemas físicos.

Uma sucessão de incidentes durante a carreira – incluindo quedas, um tumor e até uma pancada na cabeça durante um assalto na Bulgária – havia criado dificuldades motoras em ambas as mãos, cenário pra lá de terrível para quem vive da habilidade dos dedos.

Em 2004, Martins iniciou os estudos de regência, alternando a função de maestro com a de pianista em ocasiões especiais ou quando a fisioterapia trazia melhoras significativas.

O histórico de superação, portanto, faria diferença naquela manhã de setembro. E com essa o acaso não contava.

Depois de trocar algumas palavras com a organização, o maestro toma o microfone e anuncia o inesperado: executaria algumas canções ao piano, ato previsto para o final do espetáculo.

Sem a possibilidade de utilizar o sistema de som, desligado por segurança em razão do acúmulo de água no palco, o maestro não teve dúvidas. “Venham. Subam todos”, gesticulava. Pega de surpresa, a plateia se entreolhava sob os guarda-chuvas, como se perguntasse se aquilo era mesmo verdade.

Rodeado pelo público, João Carlos Martins tocou Bach, Tom Jobim e o Hino Nacional Brasileiro.

Em meio a uma plateia emocionada, que apreciava cada segundo por saber que estava diante de um momento histórico, o pianista ofereceu “aos céus” sua versão de “Ave Maria”. E saiu ovacionado pelos admiradores, que ressaltaram sua humildade, o respeito pelo público e seu compromisso com a música.

A chuva persistia lá fora, embora tivesse perdido a agressividade. Talvez reconhecesse que o cenário agora era outro: a batuta havia voltado para as mãos do maestro.

Um comentário sobre “Concerto para acalentar temporais

  • Lembro bem desse dia. Relutamos a sair de casa com aquela chuva prevendo que nada aconteceria naquele domingo como tínhamos planejado, mas perto da hora do almoço com os pingos afinando resolvemos verificar “in loco” nossas previsões e não é que de dentro do carro estacionado por perto (não daria pra descermos) ouvimos o som do piano do João Carlos mais um violino perseverante à imagem das nuvens!? A simbologia daquela atitude contrastou com a arrogância de vários “medalhões” que se vê por aí e falando em medalha, horas depois também deu para participar do festival de pipas na Emapa e garantir uma para o mais jovem “empinador de papagaio” do dia.

    Resposta

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

error: Para reproduzir nosso conteúdo, entre em contato pelo contato@foradepauta.com