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A narração de um crime passional na década de 30

Por que a notícia sobre o assassinato de uma jovem publicada há quase 90 anos sugere que pouca coisa mudou quando o assunto é patriarcalismo

Flávio Mantovani

Sob o título “A tragédia de Monção”, antigo nome de Iaras, a edição de 16 de agosto de 1931 do jornal avareense “O Commércio” noticiava que um rapaz casado havia matado a tiros a integrante de um grupo de teatro itinerante. O motivo: a paixão incontida pela forasteira. Consumado o crime, o homem disparou contra a própria cabeça.

O texto, garimpado pelo pesquisador Gesiel Júnior e cedido a pedido do Fora de Pauta, reproduz o ideário patriarcal da época, uma vez que atribui à vítima o papel de concorrer “para que o coração inflamado do desatinado rapaz mais violentamente pulsasse”.

Embora tenha caráter pitoresco e trágico, a narrativa ganha importância histórica ao evidenciar que o país pouco avançou no sentido de superar tal anacronismo nesses quase 90 anos. Leia a seguir a notícia na íntegra.

“A pacata e risonha Vila de Monção, no município de Santa Bárbara do Rio Pardo, na noite de 11 do corrente, foi palco de uma tragédia na qual tombaram um rapaz casado, pai de cinco filhos, e uma lindíssima jovem de 17 anos de idade.

Os protagonistas

Foram protagonistas da tragédia de Monção Florêncio Killes Júnior, argentino, casado, de 28 anos, funcionário público, residente naquela localidade, e a jovem Josephina Marcelli, brasileira, solteira, de 17 anos, artista de um grupo teatral dirigido por seu pai Oreste Marcelli, que se achava naquela localidade promovendo uma série de espetáculos.

Uma paixão que nasce

Logo na primeira representação do grupo teatral do qual fazia parte a bela e insinuante jovem que era Josephina, a qual teve lugar naquele povoado nos primeiros dias do corrente mês, Florêncio Killes Júnior, casado, porém moço cheio de vida e desembaraçado, enlevado pela beleza cativante da mulher que via pela primeira vez, sentiu seu coração pulsar violentamente, ficando tomado de amores.

Os dias passavam e o apaixonado Florêncio ganhava terreno, alimentando sua doida paixão, ora palestrando com a mulher que agora loucamente amava, ora dirigindo-lhe, e isto quase que diariamente, cartas cheias de palavras açucaradas e promessas de amor.

Josephina, se não o amava, no entanto, talvez cheia de piedade pelo seu apaixonado ou induzida pela vaidade de saber-se uma mulher bela e cativante, parecia corresponder ao afeto de Florêncio, com quem se encontrava diariamente, concorrendo assim para que o coração inflamado do desatinado rapaz mais violentamente pulsasse.

A tragédia

Na noite de 11 do corrente realizava-se a última representação da trupe que, no dia seguinte, seguiria para a localidade denominada Óleo. Florêncio, após terminado o espetáculo, convidou a jovem para uma entrevista de despedida, a qual ela acedeu, indo primeiramente para a casa onde estava residindo, visto que a entrevista teria lugar em um bosque denominado “Saudades”, que ficava mesmo ao fundo do quintal da referida casa.

Ali chegada, queixando-se de fortes dores de dentes, ela saiu para o quintal, indo se encontrar com o seu apaixonado que, conforme combinara, lá a estava esperando. A cena que se passou foi rápida e sem testemunhas. Porquanto a progenitora de Josephina, dando pela falta da mesma, saiu ao quintal a fim de chamá-la e escutou a detonação de quatro tiros.

Marcelli, percebendo o que podia ter se dado, antes do mais encaminhou-se para a casa do senhor José Forte, 1º suplente do subdelegado em exercício daquela comunidade.

Em companhia dessa autoridade policial, do escrivão da subdelegacia e de outras pessoas, dirigiu-se ele para o fundo do quintal da casa e, ao penetrarem todos no bosque, se lhes deparou um quadro trágico: Florêncio Killes Júnior, agonizante, sustendo nos braços o corpo já cadáver de Josephina Marcelli, a qual apresentava dois ferimentos produzidos por projétil de arma de fogo (revólver), um no mamelão esquerdo, interessando o pulmão esquerdo e o coração, e outro na região do hipocôndrio esquerdo, perfurando a décima terceira costela, lesando o mesentério, músculos e vasos profundos da cavidade, com saída na cavidade abdominal, apresentando as feridas caracteres de terem os tiros sido disparados à queima-roupa.

A autoridade policial fez remover o cadáver de Josephina para o posto policial, bem como o corpo desfalecido de Florêncio, que apresentava dois ferimentos de bala, um na região da têmpora parietal e outro na região frontal, interessando apenas a pele e do mesmo lado do primeiro.

Florêncio, à aproximação da autoridade, proferiu apenas estas palavras: “Não me judiem!”. Depois entrou em estertorosa agonia, sucumbindo duas horas depois.

O fato foi imediatamente comuniciado ao delegado regional da polícia de Botucatu, dr. Raúl Valentim de Queiroz, que deu as providências necessárias, fazendo seguir logo para aquela localidade, após a recepção do telegrama da autoridade de Monção, o médico legista dr. Bittencourt, que ontem mesmo procedeu a autópsia nos cadáveres dos dois infortunados jovens, constatando que Josephina morreu em consequência de hemorragia traumática interna e que a morte de Florêncio Killes Júnior teve como causa uma hemorragia cerebral traumática.

Foi também constatada pelo médico referido a virgindade de Josephina”.

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