Reportagens

A labuta de um artista de rua de Avaré

A trajetória do músico Nômadhe, que já passou o chapéu em vários estados e se apresenta com frequência na região central da estância turística

Flávio Mantovani

Mãe e filha passavam pelo calçadão de Itapeva quando avistaram o músico Daniel dos Santos, 33, tocando uma canção de Chico Buarque. A cena prendeu a atenção da dupla: elas não arredaram o pé enquanto o número do itapetiningano – cujo nome artístico é Nômadhe – não chegou ao fim.

Gostaram tanto que queriam contribuir de alguma forma, embora estivessem sem dinheiro. O artista de rua tentou poetizar a passagem, dizendo que aceitaria sorrisos como pagamento.

As mulheres, no entanto, não se contentaram. Mãe e filha capricharam no batom e imprimiram seus lábios no chapéu do tocador, cada uma de um lado.

“Hoje ele é cheio de beijos. As pessoas reconhecem o chapéu logo de cara. Mais do que eu”, brinca o músico em entrevista ao Fora de Pauta

Nômadhe começou tocando violino numa comunidade religiosa em Avaré. A primeira apresentação na rua aconteceu nos tempos em que estudava no conservatório musical de Tatuí. Sem grana para a passagem até Itatinga, onde morava na época, ele resolveu tocar peças barrocas na rodoviária de Cerquilho a fim de levantar uns trocados.

A ação não rendeu o suficiente para custear o trecho, mas colocou o músico mais perto daquele estilo de vida. Tempos depois, ele conheceu um artesão que usava música para atrair clientes. Foi o estímulo que faltava. O desejo de botar o pé no mundo voltou com tudo.

“Espectador da sociedade”

Nômadhe já passou por 13 estados, mas se engana quem acha que vida de artista de rua é fácil. 

O direito de ir e vir costuma ser violado, já que os músicos não são vistos como trabalhadores convencionais. Além disso, continua ele, a contribuição voluntária é confundida com esmola e por isso as autoridades acompanham a prática com desconfiança, quando não com agressividade aberta.

“É um estilo de vida alternativo que requer adaptações. Vivo de forma itinerante e preciso entender as limitações que isso me causa. Levo pouca bagagem e tenho gastos constantes com passagens e hospedagem. Sem renda fixa, meu ganho é sensível ao tempo, cultura e à estabilidade econômica de nossa sociedade”, analisa.

Capturar a atenção do público também é um desafio. “As pessoas estão ali de passagem. Por conta disso, o repertório tem que ser mais poético, passar mensagens que provoquem ou inspirem. É o que motiva o público a conhecer o meu trabalho”, conta o músico, que tem como referência a folk music nacional e estrangeira, entre outros estilos. 

Canções de Zé Ramalho, por exemplo, servem bem ao propósito de despertar a curiosidade dos transeuntes. No entanto, o repertório varia de acordo com o público.

A exposição também tem seus riscos. O itapetiningano foi assaltado recentemente em uma praia do nordeste. Os agressores levaram o violino. Já violão que levava nas costas acabou danificado.

Trabalho de base

Diante da carência de políticas públicas para a valorização da arte no país, Nômadhe vê o ofício como uma espécie de trabalho de base. “É uma forma de assegurar o acesso à cultura, já que o espaço é público e gratuito”, avalia.

Enquanto o poder público não se engaja na causa, a tecnologia vem facilitando a vida em alguns aspectos. O Street Music Map, por exemplo, é um site brasileiro que mapeia locais com apresentações em vias públicas. “A percepção é que essas cidades catalogadas são mais receptivas e dão mais estímulo para a arte de rua”, afirma. 

O Brasil, porém, está longe da realidade de cidades como Nova York ou Londres, que toleram o artista com esse perfil. Para sobreviver, o músico também faz shows privados, toca em bares e até se arrisca em trabalhos ligados à informática e recepção em eventos.

Quem vê sua entrega nas apresentações no centro de Avaré, que costumam durar horas, custa a crer que a cena pode demorar a se repetir.

“A música de rua ainda é minha profissão de “crise”, mas pretendo voltar ao mercado formal assim que surgir uma oportunidade. Prefiro a música como um meio ativista e não como renda principal. Mas não vou desistir, apenas diminuir o ritmo”, confidencia.

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